CONTRADIÇÕES TEÓRICAS, POLÍTICAS E PRÁTICAS NO SISTEMA DE ATRIBUIÇÕES DE AULAS NO ESTADO DE SÃO PAULO

Lucas Bueno Siqueira
Tathiane Milaré
Fernanda Vilhena Mafra Bazon

Esta pesquisa teve por objetivo analisar o sistema de atribuição de aulas da Secretaria Estadoual da
Educação de São Paulo e sua interface com a as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores
de 2015. A abordagem metodológica foi fundamentada no materialismo histórico dialético, partindo da análise
documental, tendo como base teórica os pressupostos da Pedagogia Histórico Crítica (PHC). Dentre os resultados
obtidos estão a contradição entre aquilo que é ideal no sistema educacional, pautado nos instrumentos legislativos
e nas discussões atuais em educação, a precarização das condições de trabalho dos professores atuantes na rede
pública e a ínfima exigência na formação daqueles que atuam no ensino público paulista.

Métricas

Carregando Métricas ...

Caderno Temático

CONTRADIÇÕES TEÓRICAS, POLÍTICAS E PRÁTICAS NO SISTEMA DE ATRIBUIÇÕES DE AULAS NO ESTADO DE SÃO PAULO

THEORETICAL CONTRADICTIONS, POLICIES AND PRACTICES IN THE CLASS ASSIGNMENT SYSTEM IN THE STATE OF SÃO PAULO

CONTRADICCIONES TEÓRICAS, POLÍTICAS Y PRÁCTICAS EN EL SISTEMA DE ASIGNACIÓN DE CLASES EN EL ESTADO DE SÃO PAULO

Lucas Bueno Siqueira *
Tathiane Milaré
Universidade Federal de São Carlos, Brasil
Fernanda Vilhena Mafra Bazon *

CONTRADIÇÕES TEÓRICAS, POLÍTICAS E PRÁTICAS NO SISTEMA DE ATRIBUIÇÕES DE AULAS NO ESTADO DE SÃO PAULO

Olhar de Professor, vol. 21, núm. 2, 2018

Universidade Estadual de Ponta Grossa

Recepção: 10 Agosto 2018

Aprovação: 10 Novembro 2018

Resumo: Esta pesquisa teve por objetivo analisar o sistema de atribuição de aulas da Secretaria Estadoual da Educação de São Paulo e sua interface com a as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores de 2015. A abordagem metodológica foi fundamentada no materialismo histórico dialético, partindo da análise documental, tendo como base teórica os pressupostos da Pedagogia Histórico Crítica (PHC). Dentre os resultados obtidos estão a contradição entre aquilo que é ideal no sistema educacional, pautado nos instrumentos legislativos e nas discussões atuais em educação, a precarização das condições de trabalho dos professores atuantes na rede pública e a ínfima exigência na formação daqueles que atuam no ensino público paulista.

Palavras-chave: Atribuição de aulas, Diretrizes Curriculares Nacionais para Formação de Professores, Educação básica paulista.

Abstract: This research aimed to analyze the class assignment in São Paulo State Secretariat of Education and its interface with the National Curriculum Guidelines for teacher training in 2015. The methodological approach was based on dialectical historical materialism based on documental analysis and the presuppositions of Historical Critical Pedagogy (PHC). Among the obtained results are the contradiction between what is ideal in the educational system, based on the legislative instruments and the current discussions in education, the precarization of the working conditions of the teachers acting in the public network and the smallest requirement in the training of those who work in public education in São Paulo. We believe that this study encourages new researches related to the quality of education in São Paulo, the working conditions of teachers and the emergence in the initial and continuing teacher training.

Keywords: Class assignment, National Curriculum Guidelines for Teacher Training, Basic education in São Paulo.

Resumen: Esta investigación tuvo por objetivo analizar el sistema de asignación de clases de la Secretaría de Estado de Educación de São Paulo y su interfaz con las Directrices Curriculares Nacionales para la formación de profesores de 2015. El enfoque metodológico fue fundamentado en el materialismo histórico dialéctico, partiendo del análisis documental, teniendo como base teórica los presupuestos de la Pedagogía Histórico Crítica (PHC). Entre los resultados obtenidos están la constatación de la contradicción entre lo que es ideal en el sistema educativo, pautado en los instrumentos legislativos y en las discusiones actuales en educación, la precarización de las condiciones de trabajo de los profesores actuantes en la red pública y la ínfima exigencia en la formación de aquellos que actúan en la enseñanza pública paulista. Creemos que este estudio incita a nuevas investigaciones relacionadas con la calidad de la educación paulista, las condiciones de trabajo de los profesores y la emergencia en la formación incial y continuada de docentes.

Palabras clave: Asignación de clases, Directrices Curriculares Nacionales para la Formación de Profesores, Educación básica paulista.

Introdução

Esta pesquisa tem como objetivo analisar o sistema de atribuição de aulas da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo (SEE/SP) e sua interface com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores em nível superior no país, Parecer nº 02 de 2015. (BRASIL, 2015). É necessário, portanto, que apresentemos a atual configuração do quadro docente das escolas públicas paulistas e sua relação com o contexto histórico, político e econômico que permeia a contratação de professores no Estado.

De acordo com Moura (2013), há professores atuantes na educação básica que lecionam sem o devido diploma de curso de licenciatura, mas que, ainda assim, são considerados qualificados e trabalham com contratos temporários. Há sete diferentes categorias docentes no quadro do magistério, dentre elas, professores efetivos, com contratos temporários, eventuais e readaptados. Para a autora, “essas diversas formas de contratos de trabalho refletem nas jornadas de trabalho, na remuneração e também na organização do trabalho pedagógico na escola.” (MOURA, 2013, p. 37). Além disso, é no contexto de reestruturação do setor de serviços públicos, como saúde, energia e educação, que diversos trabalhadores estatais e públicos vêm sendo atingidos (ANTUNES, 2007) e no caso dos professores paulistas, isso se revela por meio da diversificação contratual.

Foi logo após a Segunda Guerra Mundial que o neoliberalismo surgiu como reação teórica e política ao Estado de Bem-Estar, em países capitalistas da América do Norte e da Europa. Em sua obra, O caminho da servidão, Friedrich Hayek denuncia que as limitações impostas pelo Estado aos mecanismos de mercado são uma ameaça fatal à liberdade econômica e política. Com apoio de outros economistas e filósofos, o ideal neoliberal foi ganhando força, até que as primeiras medidas foram postas em práticas, com a eleição de Margaret Thatcher, na Inglaterra, em 1979, e de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, em 1980. Ambos adotaram o pacote neoliberal como medida alternativa à crise capitalista da época, incluindo sempre o discurso anticomunista, presente em todas as correntes capitalistas do pós-guerra. (ANDERSON, 1995).

Em busca de uma estabilidade monetária, ainda que de forma quase que ditatorial, a maioria dos países neoliberais, por um lado, passou a manter o Estado forte o suficiente para liquidar os gastos desnecessários, privatizar empresas estatais e acabar com os sindicatos, e por outro, diminuir os investimentos e as intervenções estatais nas questões sociais e econômicas. (ARCE, 2001). Na América Latina, as ideologias neoliberais puderam ser vistas inicialmente em dois momentos, em regimes ditatoriais: no Chile, a partir da década de 1970, e na Bolívia, a partir de 1985. (ANDERSON, 1995). Já na década de 1990, as nações latino-americanas interpretaram que os países que conseguiram aliar o liberalismo à democracia representativa, se tornaram países desenvolvidos porque tiveram simultâneamente transformações econômicas e políticas. Nessa lógica, na busca de seu próprio desenvolvimento, restava aos países subdesenvolvidos a volta às tradições liberais, fato observado em países como Argentina, Brasil, Chile e México. (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2003).

As transformações no campo cultural, econômico, educacional, político e social, provenientes da globalização, têm origem nas transformações técnico-científicas que atualmente se relacionam ao neoliberalismo. Pautado nos interesses econômicos resultantes do conflito entre Estado e Mercado, o desenvolvimento técnico-científico reorganizou a lógica do trabalho em nossa sociedade. (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2003). Conceitos como autonomia, competitividade, descentralização, eficácia, eficiência, equidade, flexibilidade, formação polivalente, produtividade e qualidade total assumem destaque no mercado de trabalho, levando o setor público a ser associado à ineficiência e à falta de qualidade, tornando-se responsável pela crise do sistema. Trata-se da lógica de Estado Mínimo, na qual o Estado é mínimo para prover e máximo para regular. (ARCE, 2001).

O Brasil vivenciou as políticas neoliberais a partir de 1990 no governo de Fernando Collor de Mello, com a intensificação das mesmas camufladas pelo discurso da modernização e da globalização, na tentativa de tornar o Brasil um país de primeiro mundo. (ARCE, 2001). As medidas empreendidas por Collor, no início da década de 1990, anunciaram um alinhamento da economia brasileira às condições do capital externo, tornando possível a reestruturação política, econômica e produtiva durante o governo FHC. (SANTOS, 2016). Nesta mesma década, a política brasileira foi influenciada pelo Banco Mundial (BM), que apontou a educação como instrumento fundamental para o crescimento econômico e para a redução da pobreza. (LOPES; CAPRIO, 2008). Em contrapartida, o BM tem privilegiado a capacitação em serviço e tomado o aprendizado na prática como suficiente, gerando uma depreciação dos cursos de formação inicial de professores. (ARCE, 2001).

De acordo com Santos (2016), o Estado de São Paulo acompanhou as mudanças do âmbito nacional ocorridas na década de 1990. A SEE/SP apresentou às suas escolas diversas medidas que reformularam a estrutura educacional paulista, de modo que a função social da instituição ganhou ênfase na eficiência e produtividade com baixo custo financeiro. Os ideais neoliberais trouxeram mudanças sem precedentes na educação paulista, dentre elas, as reorganizações escolares, a implantação de projetos pedagógicos, a flexibilização do ensino e a progressão continuada, sendo todas essas modificações impostas ao corpo docente. Destacamos que “a diversidade de medidas políticas e regras contratuais ocorridas ao longo do tempo envolveu inúmeras reformulações nos quadros de funcionários da administração pública direta e indireta.” (SANTOS, 2016, p. 51), afetando a configuração do quadro docente, que incorporou diferentes tipos de contratos, com diferentes condições de trabalho.

A organização do processo anual de atribuição de aulas é regida pela Resolução SE nº 65, de 11 de dezembro de 2017, que alterou a Resolução SE nº 72, de 22 de dezembro de 2016. Esta resolução especifica que, na rede pública de educação básica do Estado de São Paulo, há a possibilidade das aulas remanescentes serem atribuídas a “portadores” de qualificações docentes, em disciplinas identificadas como correlatas, a partir da análise do histórico dos cursos de graduação. As qualificações docentes envolvem profissionais com e sem diploma de conclusão de curso, sendo eles de licenciatura, bacharelado ou tecnologia em nível superior. (SÃO PAULO, 2017).

Sendo os docentes representantes de um setor vital para o funcionamento da sociedade atual e peças-chave para a compreensão das constantes transformações que a mesma vem sofrendo (GATTI, 2013), a formação de professores demanda objetivos e competências específicas que a organização escolar (SAVIANI, 2009) e os cursos de licenciatura devem seguir, a partir das políticas educacionais vigentes. Em 2015, o Conselho Nacional de Educação (CNE) promulgou a Resolução CNE/CP nº 02, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior e para a formação continuada de professores.

Aspectos didáticos da docência: quais os saberes fundamentais ao professorado?

Segundo Saviani (2008), a educação tem como objetivos o reconhecimento dos elementos culturais que, por meio da assimilação, proporcionem o desenvolvimento da humanidade nos homens e, consequentemente, a busca pela conquista de maneiras mais viáveis para se alcançar esse objetivo. Os elementos culturais que precisam ser ensinados devem ser pautados no que o autor conceitua como “clássico”, ou seja, naquilo que se firma como essencial e validado historicamente pela sociedade. Desta forma, a escola é uma instituição que tem como função a socialização do saber sistematizado, que diz respeito ao conhecimento científicos, filosóficos e artísticos evidenciados histórica e socialmente.

A ação mais direta da função escolar é desempenhada pelos professores (GATTI, 2013), que trabalham para que os alunos passem a dominar o saber escolar que por eles é mediado. (SAVIANI, 2008). Entende-se por saber escolar “o saber dosado e sequenciado para efeitos de sua transmissão-assimilação no espaço escolar, ao longo de um tempo determinado.” (SAVIANI, 2008, p. 17). Desta forma, faz parte da função docente garantir que todos os alunos, independente de classes sociais ou condições individuais, tenham pontos de chegadas equiparados. (SAVIANI, 2012).

Para tanto, a formação do professor deve contemplar cinco saberes fundamentais à sua ação, que são: saber específico, saber pedagógico, saber didático-curricular, saber crítico-contextual e saber atitudinal. (SAVIANI, 1997). É recorrente a visão de que o professor é o detentor do saber e possui pleno domínio dos conteúdos da disciplina que ministra. Ainda que pareça óbvio, o domínio do conteúdo específico, ou seja, dos conhecimentos pertencentes ao componente curricular lecionado, o saber específico, deve ser reafirmado para garantir uma formação docente integral. Por muito tempo, a formação de professores no país se ateve apenas a este saber docente, reforçando a ideia inadequada de que o ensino se dá por improviso, e que o conhecimento específico é suficiente. É necessário que o docente possua também o saber pedagógico, que se refere aos conhecimentos produzidos pelas ciências da educação. Sendo a docência uma profissão, há conteúdos básicos que devem compor o currículo dos cursos de formação inicial de professores. Pode-se listar disciplinas como a Didática, Filosofia da Educação, Sociologia da Educação, Psicologia da Educação, Organização e Política da Educação, Educação Inclusiva, etc. Os conhecimentos básicos oferecidos por estas disciplinas implicam no reconhecimento da identidade profissional do docente, que passa a ver as teorias, sistemas e tendências educacionais como passíveis de transformações e resultantes da ação humana em um processo histórico-social.

O terceiro saber fundamental, didático-curricular, está diretamente relacionado a prática docente. Entre as décadas de 1940 e 1970, o modelo “3+1” foi predominante nos cursos de formação de professores (SAVIANI, 2009), estando presente até hoje em alguns cursos de licenciatura pelo país. Se, por um lado, o problema deste modelo é explicado a partir do saber didático-pedagógico, por outro, a necessidade deste saber é justificada pela ineficiência deste modelo. A desarticulação entre os conhecimentos específicos e pedagógicos presentes no “3+1” inviabiliza uma formação docente voltada ao desenvolvimento de uma metodologia de ensino, pois esta demanda uma integração entre conhecimentos específicos e pedagógicos. Essa necessária articulação, propiciada pelo saber didático-curricular, permite que o professor organize e realize seu trabalho na relação professor-aluno, segundo seu aporte metodológico. Como discute Libâneo (2017), é necessário que os cursos de formação de professores apresentem um conjunto de disciplinas articuladas entre si, que propiciem ao professor uma formação pedagógica, específica e teórico-prática.

Não distante, os pressupostos teórico-metodológicos que orientam o trabalho do professor e, consequentemente, os recursos e estratégias a serem utilizados nas aulas, não seguem uma “receita de bolo”, pois o contexto na qual a educação está sendo promovida deve ser levado em conta. De acordo com Saviani (1997), é necessário que o professor compreenda as condições sócio-históricas que permeiam o processo educativo, sendo este o saber crítico-contextual. É importante salientar que não se trata de diferenciar os conteúdos a serem trabalhados em diferentes contextos, mas, sim, entender que o meio no qual o aluno se insere é de fundamental importância para a efetivação do aprendizado, pois este oportuniza o professor reconhecer mais facilmente o ponto de partida e estabeleça condições adequadas para se alcançar o ponto de chegada, como discutido anteriormente. Este saber atenta para o compromisso social da educação com a democracia.

O último saber que o autor propõe, diz respeito às competências relacionadas à personalidade do professor, o saber atitudinal, que recai no domínio dos comportamentos e das vivências consideradas adequadas ao trabalho educativo. É fundamental que o professor tenha disciplina, pontualidade, coerência, clareza, justiça e equidade, diálogo, respeito aos alunos, atenção às suas dificuldades, etc., de modo que um efetivo processo de ensino-aprendizagem se torne possível.

A prática docente sem fundamentação, ou seja, desvinculada da teoria, não passa do puro espontaneísmo. O fazer pelo fazer é superado pela práxis, que é quando a prática está fundamentada na teoria. É por meio da formação de professores que a práxis se efetiva na docência. (SAVIANI, 2008). Com isso, nota-se a importância de uma sólida formação inicial docente. (GATTI, 2013). A docência demanda rigor metodológico e saberes inerentes à sua prática, reafirmando a necessidade do trabalho docente promover uma educação que cumpra sua função social, comprometida com a democracia.

O perfil docente da rede pública paulista e as Diretrizes Nacionais para Formação de Professores

Os sistemas educacionais são fortemente influenciados pelo interesse econômico, incutindo em reformas e políticas públicas educacionaisa este alinhadas. Não distante, no Brasil, o trabalho docente vem sendo afetado pelas políticas neoliberais, tornando-se cada vez mais precarizado, por meio do aumento do número de contratos temporários que incidem em desvalorização salarial, perda de direitos trabalhistas e instalibilidade profissional. No Estado de São Paulo, a contratação de professores em regime de trabalho temporário data da década de 1970, ou seja, as precárias condições de trabalho para os docentes já fazem parte do cotidiano escolar paulista há mais de quarenta anos. (OLIVEIRA, 2004; MOURA, 2013).

A diversidade contratual, que na rede pública é comumente associada à categoria do professor, é evidenciada pela existência de docentes que são funcionários públicos, servidores públicos e prestadores de serviços, que realizam as mesmas tarefas, mas possuem diferentes condições de trabalho. (MOURA, 2013). A seguir, no Quadro 1, estão dispostas as sete categorias docentes e suas situações funcionais, dos professores da rede pública paulista.

Categorias Docentes e situação funcional na SEE/SP
Quadro 1
Categorias Docentes e situação funcional na SEE/SP
MOURA (2013)

Analisando as informações apresentadas no Quadro 1, podemos notar que apenas os professores efetivos, estáveis, categoria F e readaptados possuem estabilidade de emprego, ainda que com diferentes situações funcionais. Além disso, nem todos os professores da rede pública estão aptos a participarem do processo de atribuição de aulas, como é o caso dos professores eventuais, ou categorias S, I ou V, que são pagos pelas aulas dadas em substituição. (MOURA, 2013).

Na perspectiva do materalismo histórico dialético a abordagem metodológica valoriza a relação entre sujeito e objeto, compreendendo que da mesma maneira que o sujeito produz o objeto, este também determina o sujeito. Também se entende que sujeito e objetos estão vinculados a um contexto, pois fazem parte de um processo histórico e cultural, sendo dependentes dos fatores políticos, econômicos e culturais. (GOMIDE, 2014).

Este estudo tem como documentos de pesquisa as normativas legais que regulamentam o processo anual de atribuição de aulas da SEE/SP nos últimos dez anos e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores de 2015. Para isso, contaremos com a análise documental, que interpreta os documentos escolhidos de acordo com os objetivos da pesquisa. (PIMENTEL, 2001).

De acordo com Gomide (2014), um documento normativo é produto da sociedade que o cria, de modo que a compreensão de suas intencionalidades implícitas se faz necessária. Assim sendo, a metodologia escolhida investiga as diferentes faces da questão, para que se possa chegar à totalidade concreta de tais documentos, superando o senso comum. Considerando os documentos que regulamentam o processo anual de atribuição de aulas da SEE/SP como uma produção discursiva dada a partir de um contexto histórico, político e cultural da educação nacional, a análise documental teve como base teórica a Pedagogia Histórico Crítica. (SAVIANI, 2008).

De acordo com Moura (2013, p. 89),

A atribuição de aulas funciona como recrutamento e seleção das pessoas interessadas em lecionar e que tenham ou estejam cursando nível superior. No Estado de São Paulo a atribuição é dividida em dois períodos distintos: a atribuição para os professores efetivos e a atribuição para professores estáveis e temporários.

Até 2008, o processo seletivo das atribuições de aulas era relativamente simples, no qual os professores temporários realizavam as inscrições nas diretorias de ensino no final de cada ano e, posteriormente, era publicada a classificação para escolha de classes/aulas a partir da pontuação baseada no tempo de serviço. (SÃO PAULO, 1998). Entretanto, desde 2008, o procedimento vem sofrendo alterações, via resolução normativa.

Para identificar as resoluções que alteraram o processo de atribuição de aulas da SEE/SP nos últimos dez anos, foi realizada uma busca no Portal da Secretaria da Educação. Nele, estão disponíveis as resoluções da SE, publicações e legislação que regem a educação estadual paulista. A busca teve como filtro as palavras-chave “atribuição de aulas”, em que foram identificadas 22 resoluções1, porém, apenas três delas se referiam ao processo de atribuição de aulas do ensino regular, especificamente no campo “aula”, que são de interesse para este estudo, assim como dispostas no Quadro 2.

Resoluções da SEE/SP que alteraram os procedimentos do processo anual de atribuição de classes e aulas nos últimos dez anos
Quadro 2
Resoluções da SEE/SP que alteraram os procedimentos do processo anual de atribuição de classes e aulas nos últimos dez anos
SÃO PAULO (2008c; 2016; 2017). Elaborado pelos autores

A Resolução SE nº 69/08 (SÃO PAULO, 2008c) estabeleceu normas e critérios para a implementação do Decreto nº 53.037/08, alterado pelo Decreto nº 53.161/08 (SÃO PAULO, 2008a; 2008b), que redefiniu a contratação temporária de professores no estado. Nestes documentos, estão especificados os procedimentos relacionados a(os): concursos públicos estaduais, que passaram a ser realizados regionalmente, e não mais a nível estadual; remoções, que se referem à mudança de unidade escolar realizada por professores efetivos; substituições dos professores efetivos; contratação temporária de professores, sendo regulamentado o novo processo seletivo, via realização de prova classificatória.

Dentre as disposições da Resolução SE nº 69/08, pode-se destacar as seguintes:

Art. 1º - [...]

§ 1º - Poderão se inscrever para participar do Processo Seletivo Simplificado os docentes ocupantes de função-atividade e os candidatos à admissão que atendam os requisitos mínimos de habilitação ou de qualificação estabelecidos em regulamento específico.

§ 2º - O aluno de Curso Superior deverá se inscrever na disciplina específica de seu Curso.

§ 3º - O Processo Seletivo Simplificado consistirá de prova classificatória que será realizada concomitantemente em todas as Diretorias de Ensino do Estado.

§ 4º - O docente/candidato que, por qualquer motivo, deixar de efetuar prova não será classificado e estará impedido de participar de todas as etapas do processo de atribuição de classes e aulas, ficando vedada a possibilidade de posterior cadastramento. [...]

Art. 4º - Cada prova será composta por 25 (vinte e cinco) questões sobre a Proposta Curricular do Estado de São Paulo, com o valor de 3,2 pontos cada, totalizando o máximo de 80 (oitenta) pontos.

Parágrafo único - para fins do processo de atribuição, a classificação final do docente, no respectivo campo de atuação - classe e ou disciplina(s) -, resultará da soma dos pontos obtidos na prova com os pontos referentes ao tempo de serviço e aos títulos de que é portador, podendo gerar pontuação diversa entre as disciplinas. (SÃO PAULO, 2008c, grifos dos autores).

O documento evidencia uma mudança no paradigma da SEE/SP quanto ao principal critério de seleção para atuação como professor temporário na rede. A pontuação que antes era baseada no tempo de serviço do docente (SÃO PAULO, 1998), passa a contabilizar, também, o resultado do candidato na prova realizada. (SÃO PAULO, 2008c). Se considerarmos que a prova exige do professor uma fundamentação teórica, de conteúdos específicos e pedagógicos, podemos inferir que esta supera a seleção de candidatos pela mera experiência na prática docente e avança no sentido de superar o mero espontaneísmo da prática pela prática.

Ainda que o documento não especifique quais as qualificações dos profissionais considerados habilitados para atuar na educação básica paulista, podemos fazer outra inferência em relação à prova: os conteúdos por ela exigidos. Como disposto no Art. 4º, a prova exige dos candidatos conhecimentos relacionados à Proposta Curricular do Estado de São Paulo. Nesse sentido, entendendo o currículo não apenas como uma lista de conteúdos, faz-se necessário que o candidato tenha conhecimento tanto dos conteúdos específicos da disciplina ministrada, quanto dos conhecimentos pedagógicos que permeiam a docência. Deste modo, ainda que tangencialmente, são exigidos dos professores os saberes específico, pedagógico e didático-curricular. (SAVIANI, 1997).

A segunda resolução apresentada no Quadro 2, Resolução SE nº 72/16, surge oito anos após a implementação da prova no processo seletivo simplificado da SEE/SP. Esta mantém esse procedimento, como indicado no seguinte trecho:

Art. 3º [...]

§ 8º - A classificação de contratados e candidatos à contratação no processo de atribuição de classes e aulas condiciona-se à realização de prova do processo seletivo simplificado, segundo critérios estabelecidos pela Secretaria da Educação. (SÃO PAULO, 2016, grifos dos autores).

Posteriormente, o documento especifica que:

Artigo 7º - Em qualquer etapa ou fase do processo, a atribuição de classe e aulas deverá observar a seguinte ordem de prioridade quanto à situação funcional:

I - titulares de cargo, no próprio campo de atuação;

II - titulares de cargo, em campo de atuação diverso;

III - docentes estáveis, nos termos da Constituição Federal de 1988;

IV - docentes estáveis, nos termos da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT;

V - docentes ocupantes de função-atividade;

VI - docentes contratados;

VII - docentes candidatos à contratação. (SÃO PAULO, 2016).

O trecho mostra que a situação funcional dos docentes define a ordem de prioridade na classificação para atribuição de aulas. Isso implica que a formação dos mesmos só é determinante quando se trata de indivíduos na mesma situação funcional. Exemplificando, um professor titular de cargo que possui apenas graduação na disciplina ministrada está à frente, no processo seletivo, de um professor estável ou contratado, que venha a ter pós-graduação na área de atuação. Este cenário se mostra mais grave ainda quando consideramos que, segundo Moura (2013), nas duas últimas décadas, em média, metade dos professores atuantes na rede pública paulista não é docente efetivo. Entretanto, é válido salientar que os professores efetivos e estáveis, possuem, minimamente, formação em licenciatura ou complementação pedagógica na área da disciplina que ministram, situação que não é garantida quando nos referimos aos professores contratados.

No Art. 8º, o documento reitera que, primeiramente, as aulas devem ser atribuídas a professores ou candidatos à contratação com devida qualificação, ou seja, com diploma de licenciatura plena na disciplina a ser atribuída. Neste mesmo artigo, os § 1º, § 2º e § 3º, colocam que além da disciplina específica, o docente pode ministrar disciplinas correlatas à sua formação, ou seja, disciplinas não específicas. Estas são definidas por meio de uma análise do histórico de graduação do professor, em que, somadas 160 horas cursadas em estudos e/ou disciplinas que tratem do conteúdo a ser ministrado, as disciplinas correlatas podem ser adicionadas à habilitação do professor. (SÃO PAULO, 2016). Por exemplo, um licenciado em Química ministra como disciplina específica o componente curricular Química, mas também pode vir a lecionar Física e Matemática, como disciplinas correlatas, de acordo com a carga horária cursada nestas áreas, em sua graduação.

Considerando os saberes fundamentais da prática docente (SAVIANI, 1997), esse esvaziamento da especificidade do professor leva a uma atuação profissional fora da sua formação, pois lhe faltam conhecimentos específicos, visto que nem todo o conteúdo da disciplina correlata foi estudado pelo mesmo em sua formação inicial. Seguindo o exemplo, um licenciado em Química, ainda que possa ministrar Física, este eventualmente pode não ter estudado em sua formação inicial conteúdos de Óptica, Mecânica, Física Moderna, etc. Além disso, outro saber apresentado por Saviani (1997) é o didático-curricular, que se refere ao ensino da disciplina cursada na formação inicial. Um professor que ministra uma disciplina correlata não teve, necessariamente, uma formação voltada para esta. Concluindo o exemplo, ainda que um licenciado em Química possa ter cursado todos, ou quase todos os conteúdos curriculares da Física, este não tem os conhecimentos necessários acerca da metodologia do ensino de Física, pois, o saber específico não recai em saber didático-curricular. Por fim, ainda nesta questão, há razões para crer que tais medidas de generalização da atuação do professor podem estar associadas à necessidade de suprir a demanda de professores na rede. Relacionando essa ideia com os apontamentos de Libâneo, Oliveira e Toschi (2003), podemos inferir que a contratação de um professor para lecionar diferentes disciplinas vem mascarada pelo discurso neoliberal de multifuncionalidade, por exemplo, que são exigidas dos trabalhadores.

Ainda no Art. 8º, os § 4º e § 5º estabelecem que, de acordo com a legislação estadual vigente, as aulas da disciplina de Educação Física poderão ser atribuídas apenas para os licenciados na área que possuam o devido registro no Sistema CONFEF/CREFs, de acordo com a legislação nacional vigente, que dispõe sobre o trabalho do educador físico. (SÃO PAULO, 2016). Não há evidências de que esta decisão está relacionada, diretamente, a uma preocupação com a devida formação inicial do professor, em licenciatura. Porém, indiretamente, está ligado às questões que permeiam a organização do trabalho do educador físico em si, visto sua responsabilidade sobre os alunos no desenvolvimento de uma aula prática na quadra poliesportiva da escola, por exemplo.

Diretamente relacionado ao esvaziamento da especificidade da formação docente, o § 6º do Art. 8º apresenta-se como uma opção para suprir a falta de professores da rede, quando esgotada a atribuição entre os docentes efetivos, estáveis e contratados com a devida formação em licenciatura plena. As aulas remanescentes ficam disponíveis para serem atribuídas a portadores de qualificações docentes, como especificado pela resolução. Estas são pessoas que tenham cursado ou cursam (com devida documentação comprobatória, como indicado no § 7º) graduação em licenciatura, bacharelado ou tecnologia em nível superior, com somatória mínima de 160 horas em estudos/disciplinas relacionados à disciplina a ser atribuída:

Art. 8º [...] § 6º [...] na seguinte ordem de prioridade:

1 - portadores de diploma de outra Licenciatura Plena que não a do vínculo;

2 - portadores de diploma de Licenciatura Curta;

3 - alunos de último ano de curso, devidamente reconhecido, de Licenciatura Plena na disciplina a ser atribuída;

4 - portadores de diploma de bacharel ou de tecnólogo de nível superior, desde que na área da disciplina a ser atribuída, identificada pelo histórico do curso;

5 - alunos de curso devidamente reconhecido de Licenciatura Plena, que já tenham cumprido, no mínimo, 50% do curso;

6 - alunos do último ano de curso devidamente reconhecido de Bacharelado ou de Tecnologia de nível superior, desde que da área da disciplina a ser atribuída, identificada pelo histórico do curso;

7 - alunos de curso devidamente reconhecido de Bacharelado/ Tecnologia de nível superior, na área da disciplina, que tenham cursado pelo menos 50% do curso. (SÃO PAULO, 2016).

Neste ponto, a questão é: o que é ter uma qualificação docente? Como afirma Saviani (1997), a docência demanda cinco saberes inerentes à sua prática, já discutidos anteriormente. Se considerarmos que, de acordo com a resolução em questão, basta que o indivíduo, formado ou não, tenha cursado 160 horas relacionadas à disciplina a ser ministrada, como suficiente para uma atuação docente, estamos negando os cinco saberes propostos pela PHC e, também, os conhecimentos didáticos necessários propostos por outros autores, como, por exemplo, Candau (2003) e Libâneo (2017).

As implicações da presença de portadores de qualificações docentes na sala de aula permeiam a falta de diversos saberes docentes. Na melhor das hipóteses, na condição de aluno de um curso de licenciatura, ainda que este esteja atuando dentro de seu plano de carreira, o mesmo pode não ter cursado integralmente todas as disciplinas da graduação específicas da área ministrada, as disciplinas pedagógicas do curso, os estágios curriculares obrigatórios, etc. Estas condições podem, potencialmente, influenciar no domínio que o docente possui dos saberes específico, pedagógico, didático-curricular, crítico-contextual e atitudinal. (SAVIANI, 1997).

Outro ponto quando nos referimos a uma sólida formação docente, como proposta por Saviani (1997) e Libâneo (2017), é que ao considerarmos que bacharéis e tecnólogos possuem qualificações docentes, recaímos na visão de que o saber específico, do conteúdo ministrado, é mais importante (ou simplesmente suficiente) que os saberes pedagógico e didático-curricular, essencialmente oportunizados pelos devidos cursos de formação inicial de professores. Além disso, tais profissionais podem, inclusive, não possuir uma formação completa nem mesmo sobre os conteúdos a serem ministrados. Exemplificando, um bacharel em Enfermagem, ainda que possua a carga horária mínima que lhe permita lecionar Biologia no ensino médio, não possui conhecimentos básicos em biologia evolutiva, ecologia, zoologia, botânica, etc., que são conteúdos fundamentais no ensino de ciências biológicas. Portanto, fica evidente que os profissionais atuantes nestas condições possuem formação insuficiente em relação aos cinco saberes fundamentais da prática docente.

O cenário se torna ainda mais crítico quando consideramos a possibilidade das aulas remanescentes não serem atribuídas, pelas mais diversas causas (incompatibilidade de horários, falta de docentes formados na área, etc.). Nestes casos, como especificado pelo § 8º do Art. 8º, as aulas podem ser ministradas por docentes eventuais de quaisquer áreas, até que seja possível a atribuição a um professor da área (SÃO PAULO, 2016). Vale lembrar que tais docentes eventuais são contratados sob condições de trabalho desfavoráveis e não possuem estabilidade de emprego (MOURA, 2013), fatores que podem afetar direta ou indiretamente a qualidade do processo de ensino e aprendizagem.

Ainda segundo a Resolução SE nº 72/16, quando atribuídas, as aulas não podem ser deixadas pelo professor,

Art. 14 [...], exceto nas situações de:

I - o docente vir a prover novo cargo/função público, de qualquer alçada, em regime de acumulação;

II - ampliação de Jornada de Trabalho do titular de cargo durante o ano;

III - atribuição, com aumento ou manutenção da carga horária, em uma das unidades em que se encontre em exercício, a fim de reduzir o número de escolas.

Parágrafo único - Em caso diverso dos previstos nos incisos deste artigo, a Comissão Regional poderá ratificar a desistência, quando constatada a ocorrência de fato superveniente relevante e desde que exista outro docente para assumir a classe ou aulas que forem disponibilizadas.

[...]

V - Das Demais Regras para o Processo Inicial de Atribuição de Classes e Aulas. (SÃO PAULO, 2016, grifos do autor).

Assim, um docente pode desistir das aulas atribuídas quando realiza a troca destas por outras, em outra unidade escolar que o mesmo já atua, visando à possibilidade de diminuir o número de escolas em exercício. Isso pode ser considerado favorável, pois, considerando que cada escola é uma escola e não há uma “receita de bolo” na atuação docente, quando um professor concentra o trabalho em uma, ou até duas unidades escolares, o mesmo pode conhecer melhor seu público, a comunidade circundante, o currículo da instituição, etc., que se relaciona ao saber crítico-contextual.

Nos Artigos 9º, 10, 11 e 12, o documento especifica os procedimentos de atribuição de aulas de Apoio Pedagógico Escolar (APE), interlocutor de Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), Educação de Jovens e Adultos (EJA) e Atividades Curriculares Desportivas (ACDs), que são atribuídas juntamente com as aulas do ensino regular, de acordo com a legislação vigente. Entretanto, as aulas dos Projetos de Pasta, como atuação no Sistema Prisional, Fundação Casa e Centros de Estudos de Línguas (CELs), por exemplo, são realizadas exclusivamente. (SÃO PAULO, 2016).

Como indicado no Quadro 2, a mais recente resolução que rege o sistema de atribuição de aulas da SEE/SP é a Resolução SE nº 65/17, que alterou a Resolução SE nº 72/16. Visto a relevância do artigo 8º na discussão deste estudo, seus parágrafos foram comparados nos dois documentos, conforme disposto no Quadro 3.

Analisando o Quadro 3, é possível notar importantes mudanças no procedimento de atribuição de aulas da SEE/SP. Dentre elas, está a retirada de dois pontos do § 6º (Art. 8º), que permitiam que alunos de cursos de licenciatura (item 5) e de bacharelado ou de tecnologia de nível superior (item 7) participassem da atribuição, dentro das disciplinas da sua área do conhecimento, conforme comprovação de carga horária mínima estabelecida. (SÃO PAULO, 2016). Como discutido anteriormente, a presença destes profissionais, sem uma sólida formação docente (LIBÂNEO, 2017) e sem o domínio dos saberes inerentes à docência (SAVIANI, 1997), poderia impactar o processo de ensino e aprendizagem nas mais diversas disciplinas ministradas, visto a formação insuficiente dos mesmos. Porém, é evidente que a situação ainda não é adequada, pois profissionais de outras áreas de atuação – bacharéis e tecnólogos, formados ou que cursam o último ano da graduação – ainda participam do procedimento, diante da escassez de professores interessados em lecionar no Estado de São Paulo, comentada por Moura (2013).

Comparação entre a redação dos § 6º, 7º e 8º do Art. 8º na Resolução SE nº 72/16 e na nova redação dada pela Resolução SE nº 65/17
Quadro 3
Comparação entre a redação dos § 6º, 7º e 8º do Art. 8º na Resolução SE nº 72/16 e na nova redação dada pela Resolução SE nº 65/17
SÃO PAULO (2016; 2017, grifos dos autores). Elaborado pelo autor

Outra alteração refere-se à uma inversão na redação dos § 7º e § 8º (Art. 8º), em que o segundo deles passa a destacar a necessidade do candidato à contratação, que é estudante de graduação, apresentar documentação comprobatória de sua matrícula no ensino superior. O § 7º (Art. 8º) passa a vigorar com alterações, em que as aulas remanescentes da atribuição, que antes ficavam somente a cargo de eventuais contratados com qualquer qualificação, agora também se destinam aos graduandos que tenham cursado 50% de seus cursos, seja de licenciatura (com preferência), bacharelado ou tecnólogo. Ou seja, estes perfis que antes participavam do procedimento de atribuição de aulas, agora, podem atuar apenas na substituição pontual de docentes. (SÃO PAULO, 2017). Nota-se que tais perfis, ditos como portadores de qualificações docentes, ainda podem estar nas salas de aula, mesmo que não tenham turmas devidamente atribuídas. Essas contradições evidenciam que as melhorias são paulatinas e apontam para uma retomada da formação docente, segundo os parâmetros nacionais.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores, estabelecidas por meio da Resolução CNE nº 2/15, partem de determinados pressupostos como a compreensão de que: a formação de professores é fundamental para o desenvolvimento da educação nacional; é necessária uma parceria entre os sistemas educacionais e as instâncias governamentais; a educação se faz com diversidade, pluralismo de ideias, liberdade de expressão, ou seja, esta deve ser verdadeiramente democrática; há princípios básicos que norteiam a formação docente no país; o currículo é entendido como um produto social que propicia uma formação cidadã para o aluno e condições básicas para o mundo do trabalho; há a necessidade de uma educação voltada para a valorização dos direitos humanos; é emergente a valorização dos profissionais da educação; dentre outros pontos. (BRASIL, 2015).

Para prosseguirmos esta discussão, é importante destacar os

[...] princípios que norteiam a base comum nacional para a formação inicial e continuada, tais como: a) sólida formação teórica e interdisciplinar; b) unidade teoria-prática; c) trabalho coletivo e interdisciplinar; d) compromisso social e valorização do profissional da educação; e) gestão democrática; f) avaliação e regulação dos cursos de formação. (BRASIL, 2015, p. 2.).

Estes princípios oportunizam discussões sobre a divergência entre o que temos no papel, como idealizado para a docência no país, e o que temos na realidade do ambiente escolar, como no caso desse estudo, nas escolas públicas paulistas de ensino regular.

Os itens a e b do trecho são contemplados apenas em cursos de licenciatura voltados para a área em que o docente atuará. A solidez na formação, já afirmada por Libâneo (2017), refere-se à estruturação dos cursos de licenciatura em relação aos conhecimentos básicos que um professor deve ter e, tanto este autor, como Saviani (2008), defendem a necessidade da unidade teórico-prática – item b – que visa uma prática profissional pautada nos pressupostos teóricos. A problemática aqui levantada é a seguinte: como ter, efetivamente, docentes que contemplem tais princípios, se a legislação vigente no estado de São Paulo não os exige, necessariamente, para a prática profissional?

Analisando a Resolução CNE nº 2/15, em seu Art. 1º, § 1º, pautado no Art. 62 da LDB, salienta-se que os sistemas de ensino devem promover a formação inicial e continuada de professores, pois esta não está a cargo apenas da esfera federal. (BRASIL, 2015).

Art. 2º [...]

§ 1º Compreende-se a docência como ação educativa e como processo pedagógico intencional e metódico, envolvendo conhecimentos específicos, interdisciplinares e pedagógicos, conceitos, princípios e objetivos da formação que se desenvolvem na construção e apropriação dos valores éticos, linguísticos, estéticos e políticos do conhecimento inerentes à sólida formação científica e cultural do ensinar/aprender, à socialização e construção de conhecimentos e sua inovação, em diálogo constante entre diferentes visões de mundo.

§ 2º No exercício da docência, a ação do profissional do magistério da educação básica é permeada por dimensões técnicas, políticas, éticas e estéticas por meio de sólida formação, envolvendo o domínio e manejo de conteúdos e metodologias, diversas linguagens, tecnologias e inovações, contribuindo para ampliar a visão e a atuação desse profissional. (BRASIL, 2015).

A docência não pode ser compreendida como espontânea, ou então, dada por um dom. (GATTI, 2013). Não se pode, por exemplo, considerar que os profissionais definidos como como portadores de qualificações docentes, pela Resolução SE nº 65/17, são efetivamente docentes, pois, tais qualificações não estão de acordo com a necessidade de formação de professores no país (BRASIL, 2015), nem mesmo com as indicações dos estudos da área, principalmente no campo da didática. (SAVIANI, 1997; CANDAU, 2003; LIBÂNEO, 2017).

Entretanto, a própria diretriz se contradiz quando considera que

Art. 3º [...]

§ 4º Os profissionais do magistério da educação básica compreendem aqueles que exercem atividades de docência e demais atividades pedagógicas, incluindo a gestão educacional dos sistemas de ensino e das unidades escolares de educação básica, nas diversas etapas e modalidades de educação (educação infantil, ensino fundamental, ensino médio, educação de jovens e adultos, educação especial, educação profissional e técnica de nível médio, educação escolar indígena, educação do campo, educação escolar quilombola e educação a distância), e possuem a formação mínima exigida pela legislação federal das Diretrizes e Bases da Educação Nacional. (BRASIL, 2015, grifos do autor).

Pois, ainda que inicialmente, o documento pontue o que se considera como prática docente, o mesmo está submetido a documentos legais superiores, como a LDB. Se a definição de docência permite que questionemos as qualificações docentes dos candidatos à contratação da SEE/SP (SÃO PAULO, 2017), a legislação vigente, Art. 61, inciso I, da LDB, determina que são considerados professores habilitados aqueles que possuem diploma de nível médio ou superior. (BRASIL, 1996; 2009). Desta forma, é possível compreender a existência dos portadores de qualificações docentes no quadro de professores da rede pública, ainda que esta situação não seja a ideal.

Em suma, quando nos referimos aos docentes da rede pública paulista em situação funcional efetiva ou estável, temos a garantia de uma formação mínima em licenciatura ou curso de complementação (MOURA, 2013), portanto, não distante das propostas da Resolução CNE nº 2/15. Porém, quando analisamos os profissionais contratados, percebe-se que há um esvaziamento na formação básica dos mesmos, que aponta para baixas no processo de ensino e aprendizagem e, consequentemente, desvalorização da formação de professores e da própria docência. Fica evidente, também, a necessidade de investimentos relacionados à formação continuada de professores (BRASIL, 2015), de modo que os profissionais já inclusos no quadro docente da SEE/SP, não precisem ser excluídos do mesmo, mas encaminhados a cursos de formação adequada, ainda mais quando lembramos da escassez de docentes no sistema em questão. (MOURA, 2013). Outro ponto é que, de acordo com Saviani (2009), ainda que bem qualificados, os professores se deparam com outros problemas que afetam a carreira docente, relacionados às precárias condições de trabalho, que permeiam a questão salarial, a jornada de trabalho, etc. Essa duplicidade em afirmar a importância da educação e em contrapartida, reduzir os custos e investimentos, precisa acabar, pois “faz-se necessário ajustar as decisões políticas ao discurso imperante.” (SAVIANI, 2009, p. 153). Uma análise educacional à luz das políticas econômicas vigentes, como esta se propôs, permite que inferências sejam levantadas e relações sejam estabelecidas entre as atuais condições de trabalho e de aprendizagem da escola pública paulista, mostrando como as medidas governamentais alinhadas aos interesses econômicos afetam negativamente a qualidade da educação.

Considerações finais

Ao término deste estudo pudemos concluir que o procedimento de atribuição de aulas de SEE/SP sofreu três alterações nos últimos dez anos, dentre as principais mudanças estão a implementação de uma prova no processo seletivo de candidatos à contratação da rede e em aspectos relacionados ao perfil formativo destes candidatos. No âmbito educacional, principalmente no que tange a contratação de professores, as políticas neoliberais se mostram presentes, e isto é evidenciado pela diversidade de situações funcionais na rede, baixo número de professores concursados e grande instabilidade de emprego, que afeta quase a metade dos professores atuantes. Tais fatores recaem na precarização das condições de trabalho e, consequentemente, na desvalorização profissional e cultural da docência.

Além disso, as exigências legais vigentes na rede pública paulista se mostram defasadas quando consideramos as determinações das Diretrizes Curriculares Nacionais para formação de professores. Nem mesmo os estudos acadêmicos produzidos na área da educação podem ser colocados como aliados da visão paulista de atribuição de aulas. Os próprios documentos se contradizem quando apontam aquilo que é ideal, mas permitem que o contrário seja posto em prática. Considerando uma análise à luz da PHC, evidenciamos um despreparo pedagógico dos professores potencialmente contratados, que pode recair no compromisso social da educação com a superação das desigualdades e em defesa da democracia. Profissionais sem a devida formação global, que demanda saberes inerentes à docência, permeando conteúdos, práticas e compreensão crítica da profissão, muito provavelmente não se voltam para uma educação como ferramenta de luta de classes.

Nesse sentido, estudos como este contribuem para a compreesão dos diversos fatores que recaem na qualidade da educação, buscando novos questionamentos, como: quais medidas imediatas podem ser tomadas para se reverter esse desprepraro de docentes atuantes? Quais os impactos diretos, no processo de ensino e aprendizagem, da atuação de professores não licenciados na educação básica? Quais as percepções dos gestores escolares (diretores, vice diretores, etc.) acerca da atuação dos professores não licenciados? Quais as expectativas dos licenciandos sobre o plano de carreira dos docentes da rede pública? Estas e outras questões podem dar continuidade a este estudo, evidenciando sua importância para a educação, inclusive no desenvolvimento de políticas públicas voltadas à formação inicial e continuada de professores no estado e no país.

Referências

ANDERSON, P. Balanço do neoliberalismo. In.: SADER, E.; GENTILI, P. (orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 9-23.

ANTUNES, R. Dimensões da precarização estrutural do trabalho. In.: DRUCK, G.; FRANCO, T. (orgs.). A perda da razão social do trabalho: terceirização e precarização. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 13-22.

ARCE, A. Compre o kit neoliberal para a educação infantil e ganhe grátis os dez passos para se tornar um professor reflexivo. Educação & Sociedade, Campinas, v. 22, n. 74, p. 251-283, abr. 2001.

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Conselho Pleno. Parecer nº 2/2015. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial e Continuada dos Profissionais do Magistério da Educação Básica. BrasíliaDF: CNE, 2015.

BRASIL. Lei nº 12.014, de 06 de agosto de 2009. Altera o art. 61 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, com a finalidade de discriminar as categorias de trabalhadores que se devem considerar profissionais da educação. Brasília, 06 ago. 2009.

BRASIL. Ministério de Educação e Cultura. LDB - Lei nº 9394/96, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da Educação Nacional. Brasília: MEC, 1996.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.

CANDAU, V. M. Rumo a uma nova didática. São Paulo: Vozes, 2003.

GATTI, B. A. Educação, escola e formação de professores: políticas e impasses. Educar em Revista, Curitiba, v. 50, p. 51-67, out./dez. 2013.

GOMIDE, D. C. O materialismo histórico-dialético como enfoque metodológico para pesquisas políticas educacionais. In.: JORNADA DO HISTEDBR, 12., 2014, São Luís. Anais [...] Campinas: Unicamp, 2014. Disponível em: http://www.histedbr.fe.unicamp.br/acer_histedbr/jornada/jornada11/artigos/2/artigo_simposio_2_45_dcgomide@gmail.com.pdf. Acesso em: 15 jun. 2018.

LIBÂNEO, J. C. Didática. São Paulo: Cortez, 2017.

LIBÂNEO, J. C.; OLIVEIRA, J. F.; TOSCHI, M. S. A educação escolar no contexto das transformações da sociedade contemporânea. In.: LIBÂNEO, J. C.; OLIVEIRA, J. F.; TOSCHI, M. S. (orgs.). Educação escolar: políticas, estrutura e organização. São Paulo: Cortez, 2003.

LOPES, E. C. P. M.; CAPRIO, M. As influências do modelo neoliberal na educação. Revista online de Política e Gestão Educacional, Araraquara, n. 5, jul./dez. 2008.

MOURA, C. B. de. A precarização do trabalho docente nas escolas estaduais paulistas. 2013, 128 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Curso de Programa de Pós-graduação em Educação, Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2013. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/96365/moura_cb_me_mar.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 27 jun. 2018.

OLIVEIRA, D. A. A reestruturação do trabalho docente: precarização e flexibilização. Educação & Sociedade, Campinas, v. 25, n. 89, p. 1127-1144, set./dez. 2004.

PIMENTEL, A. O método da análise documental: seu uso numa pesquisa historiográfica. Cadernos de pesquisa, São Paulo, n. 114, p. 179-195, set./dez. 2001.

SANTOS, F. V. Trabalho docente em escolas estaduais paulistas: o desafio do professor da categoria O. 2016, 153 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Curso de Programa de Pós- Graduação em Educação Escolar, Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2016. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/138212/santos_fdv_me_arafc.pdf?sequence=5&isAllowed=y. Acesso em: 26 jun. 2018.

SÃO PAULO (Estado). Secretaria Estadual de Educação. Instrução DRHU nº 08, de 04 de agosto de 1998. Critérios relativos à contagem de tempo de serviço para fins de classificação no processo de atribuição de classes e ou aulas. São Paulo, 1998.

SÃO PAULO. Resolução SE n. 65, de 11 de dezembro de 2017. Dispõe sobre o processo anual de atribuição de classes e aulas ao pessoal docente do Quadro do Magistério. Disponível em: https://see-diretorias.azurewebsites.net/denorte2/resolucao-se-65-de-11-12-2017/. Acesso em: 23 jan. 2018.

SÃO PAULO. Resolução SE n. 72, de 22 de dezembro de 2016. Dispõe sobre o processo anual de atribuição de classes e aulas ao pessoal docente do Quadro do Magistério. Disponível em: http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/arquivos/72_16.HTM?Time=12/11/2018%2005:01:00. Acesso em: 23 jan. 2018.

SÃO PAULO. Resolução SE n. 69, de 30 de outubro de 2008. Dispõe sobre o Processo Seletivo Simplificado para classificação de docentes e candidatos, no processo de atribuição de classes e aulas da rede estadual de ensino. Disponível em: http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/arquivos/69_08.HTM?Time=12/11/2018%2005:05:14. Acesso em: 23 jan. 2018.

SAVIANI, D. Escola e democracia. Campinas: Autores Associados, 2012.

SAVIANI, D. Formação de professores: aspectos históricos e teóricos do problema no contexto brasileiro. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro v. 14, n. 40, p. 143-155, jan./abr. 2009.

SAVIANI, D. Pedagogia Histórico-Crítica. Campinas: Autores Associados, 2008.

SAVIANI, D. A função docente e a produção do conhecimento. Educação e filosofia, Uberlândia, v. 11, n. 21/22, p. 127-140, 1997.

Notas

1 Disponível em: http://www.educacao.sp.gov.br/lise/sislegis/pesqpalchav.asp?assunto=12

Autor notes

* Licenciado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) campus Araras
* Graduada em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, mestre em Distúrbios do Desenvolvimento pela Universidade Presbiteriana Mackenzie , doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (2009) e Pós doutora pelo programa de Pós Graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie
HMTL gerado a partir de XML JATS4R por

Artigos mais lidos pelo mesmo(s) autor(es)